Winstan
De Mystical Tales
Aqui, escrevo uma história do qual ouvi há algum tempo atrás.
Capt.1 No qual conhecemos a Vila da Parede e as coisas estranhas que lá acontecem a cada nove anos
Era uma vez um jovem que queria conquistar o Desejo de seu Coração.
Mas, como acontece em todo começo, e isso não é inteiramente novo(toda história sobre todo jovem que já foi ou será contada poderia começar da mesma forma), há muitas coisas estranhas sobre esse jovem e sobre o que se passou com ele, apesar de nem ele mesmo conhecer todos os fatos.
A história começou, como muitas outras, na Parede.
A Vila da Parede localiza-se no planalto de granito no meio de um bosque, o mesmo lugar onde esteve nos últimos seicentos anos. As casas do vilarejo são quadradas e antigas, construídas com pedras cinzentas, tetos escuros e altas chaminés; aproveitando cada centímetro do espaço na pedra, as casas se espremem umas contra as outras; aqui e ali, um arbusto ou árvore crece ao lado de uma construção.
Há uma estrada que leva à Vila da Parede, um caminho sinuoso pavimentado com pedras e cascalhos, que entra bosque adentro. Muito depois da floresta, o caminho se transforma em uma verdadeira estrada cheia de animais e bichos, que correm de uma floresta à outra.
Os habitantes da Vila da Parede são taciurnos, de dois tipos distintos: o nativo dali é tão cinzento, alto e atacarracado quanto o granito sobre o qual a cidade foi construída. Os outros são aqueles que adotaram a Vila da Parede como lar há vários anos, além de seus decendentes.
No lado oeste da Vila da Parede fica o bosque; ao sul há um lago de aparência plácida que engana, servido pelos riachos que descem da colina por trás do vilarejo, ao norte. Há campos acima das colinas, nos quais pastam as ovelhas. Ao leste, há mais bosques.
Logo a leste da Vila da Parede existe uma parede grande, alta e cinzenta, do qual o vilarejo tira seu nome. Essa parede é antiga, construída por blocos quadrados e toscos de granito; ele surge de dentro do bosque e, no final, volta para o mesmo lugar.
Só existe uma passagem na parede: uma abertura de quase dois metros de largura, ao lado da vila. Atráves dessa passagem, é possível avistar um prado bem verde; além do prado, um riacho e, além deste, árvores. De vez em quando, formas e figuras são vistas, entre as árvores, a distância. Formas grandes e estranhas, além de coisinhas tênues que piscam, brilham e depois somem.
Até hoje, dois moradores ficam de vigia na passagem, um de cada lado, revezando-se em turnos de oito horas. Carregam pesados porretes de madeira e cuidam da abertura do lado do vilarejo.
Sua principal função é evitar que as crianças passem pela abertura em direção ao prado e além dele. Ocasionalmente, precisam desencorajar um andarilho solitário ou um dos poucos dos visitantes da cidade a cruzar a passagem.
As crianças, é só ameaçar com o porrete. Já em relação aos andarilhos e visitantes, precisma ser mais criativos; só recorrem à força física em último caso, quando as histórias da grama récem-plantada ou de um perigoso touro solto não são suficientes.
É raro, mas às vezes chega à Vila da Parede alguém que sabe o que procura; essas pessoas ocasionalmente recebem permissão de passar. Elas carregam um brilho no olhar que, uma vez detectado, é inequívoco.
A guarda relaxa uma vez a cada nove anos, no dia Primeiro de Maio, quando acontece uma feira no prado.
Os eventos que seguem aconteceram há muitos anos.
Muita gente chegou aquelas bandas naquela primavera. As pessoas vinham sozinhas ou em duplas, desembarcadas em alguma doca: homens e mulheres com a pele branca como papel, de pele escura como rochas vulcânicas, de pele cor de canela, falando uma grande variedade de línguas. Vinham durante o mês de abril e viajavam de caravanas, cavalos ou carroças. Muitos chegavam caminhando.
Na época, Unstand Tharn tinha dezoito anos e não era nem um pouco romântico.
Tinha cabelos e olhos castanho-claros. Era um tanto alto e falava pouco. Tinha um sorriso fácil, que iluminava seu rosto. E ele sonhava. Enquanto trabalhava na terra de seu pai, sonhava em deixar a Vila da Parede, com todo seu charme imprevisível, para ir à outros lugares onde nada dependesse da direção do vento. Ele trabalhava na fazenda do pai e não possuía nada, só uma pequena cabana bem afastada, presenteada pela família.
Visitantes chegariam até a Vila da Parede naquele mês de abril, e Unstand não gostava muito daquela idéia. A hospedaria do senhor Vromios, A sétima Ave, que normalmente era um labirinto de quartos vazios, estava cheio havia uma semana, e os forasteiros já tinham começado a alugar quartos nas fazendas e casas do vilarejo, pagando pelo alojamento com moedas estranhas, ervas e especiarias e até pedras preciosas.
Com a aproximação da feiram a atmosfera de expectativa crescia. As pessoas acordavam mais cedo, contando os dias e os minutos. Os guardas no portão, ao lado da parede, viviam impacientes e nervosos. Figuras e sombras moviam-se por entre as árvores no limite do prado.
N'a Sétima Ave, Bridget Cofrey, considerada a serviçal mais linda que já existiu, provocava conflitos entre Tommy Foster, com quem fora vista no ano anterior, e um homem enorme de olhos escuros, que carregava um macaco pequeno e barulhento. O homem quase não falava comum, mas sorria de forma expressiva sempre que Bridget passava.
No balcão do bar, os moradores acomodavam-se muito perto dos visitantes e conversavam:
- É só a cada nove anos.
- Dizem que antigamente era todo ano, no verão.
- Pergunte ao Senhor Vromios. Ele sabe.
O senhor Vromios era alto e tinha a pele cor de oliva; seu cabelo escuro era encaracolado, bem curto; tinha olhos verdes. Quando as meninas da vila viravam mulheres, logo se interessavam por ele, que nunca correspondia.
Diziam que ele chegara à vila havia um tempo, como visitante. Mas acabou ficando por lá; e seu vinho era bom, corcordavam os locais.
Uma discussão explodiu no salão entre Tommy Foster e o homem de olhos escuros, cujo nome parecia ser Alum Bey.
- Alguém os separe! Em nome do céu! Parem com isso! - Gritava Bridget. - Eles vão lutar por minha causa! - Ela sacudia a cabeça em um gesto lindo: a luz das lanternas à óleo ressaltava seus cachos dourados perfeitos.
Ninguém fez menção de separar os homens, apesar de varias pessaos, tanto moradores quando récem-chegados, terem saído para assistir
Tommy Foster tirou a camisa e levantou os punhos. O estranho riu, cuspiu no chão e agarrou a mão direita de tommy, jogando-o no chão, o queixo na poeira. Tommy ficou de pé e correu em direção ao estranho. Golpeou o rosto do homem, mas logo foi parar de novo com a cara na sujeira, o rosto arranhado pelo pó, sem folêgo. Alum Bey riu e disse algo em outra língua.
Tão rápido e tão fácil, a luta tinha acabado.
Alum Bey subiu em cima de Tommy Foster e se exibiu para Bridget Cofrey, fazendo uma mesura e sorrindo com dentes brilhantes.
Bridget o ignorou e correu até Tommy:
- Por quê? O que ele fez para você, meu amor? - perguntava enquanto limpava a sujeira do rosto dele com o avental e dizia palavras carinhosas.
Alum Bey oltou com os espectadores para o salão da hospedaria e fez a cortesia de oferecer uma garrafa de bebida do senhor Vromios para Tommy Foster, quando este retornou. Nenhum dos dois sabia dizer muito bem quem tinha vencido, quem tinha perdido.
Unstand Tharn não estava n' A Sétima Ave naquela tarde; era um sujeito prático que passara os seis meses anteriores cortejando Daise Hampstock, uma jovem também muito prática. Durante as tardes, passeavam pela ila e discutiam a teoria da rotação do cultivo, o clima e outros assuntos práticos; e, nessas caminhadas, nas quais eram invariavelmente acompanhados pela mãe e pela irmã mais nova de Daise, a uns bons seis passos atrás deles, costumavam, de vez em quando, trocar olhares apaixonados.
Na porta da casa dos Hampstock, Unstand parava, fazia uma saudação e se despedia.
Daise Hampstock entrava em casa, tirava o chápeu e dizia:
- Eu queria muito que o senhor Tharn se decidisse a me pedir em casamento. Tenho certeza de que papai não se oporia.
- Na verdade, tenho certeza de que não - disse a mãe de Daise naquela tarde, como dizia toda tarde, enquanto tirava o chápeu e as luvas. Em seguida, conduziu as filhas até a sala de estar, onde um senhor muito alto com longa barba negra estava sentando, mexendo em sua mala. Daise, a mãe e a irmã fizeram uma reverência para o senhor(que falava pouco inglês e tinha chegado alguns dias antes). O visitante temporário, por sua vez, levnatou-se e as comprimentou.
Fazia frio naquele mês de abril, mas a primavera comportava-se sempre de maneira estranha mesmo.
Os visitantes chegavam pela floresta; tomavam os quartos dos hóspedes, dormiam nos estábulos. Alguns armavam tendas coloridas; outros chegavam em suas próprias caravanas, com enormes cavalos cinzentos ou pequenos pôneis.
Na floresta, um tapete de flores cobria o chão.
Na manhã de 29 de abril, Unstand Tharn e Tommy Foster ficaram de guarda na passagem do muro. Cada um tomou um lado da abertura, esperando.
Unstand já ficara de guarda muitas vezes antes, mas, até então, o único trabalho fora espantar algumas crianças.
Naquele dia ele se sentia importante; segurava um porrete de madeira e, quando algum estrangeiro tentava atravessar o muro, ele ou Tommy diziam: "Amanhã, amanhã. Ninguem pode passar hoje, senhores".
E os estranhos recuavam um pouco e espiavam através da passagem no muro o prado desprentensioso do outro lado e as árvores comuns que pontilhavam o campo junto à floresta, sem grandes atrativos por trás delas. Alguns tentavam conversar com Unstand ou Tommy, mas os jovens, orgulhosos da posição de guardas, evitavam a conversa, contentando-se em levantar a cabeça, apertar os lábios e, em geral, fazer pose de importante.
Na hora do almoço, Daise Hamptock trouxe um prato de torta de carne com batatas e legumes para os dois e Bridget Cofrey, um pouco de cerveja picante.
E, ao final do dia, outros dois jovem do vilarejo chegaram, carregando uma lanterna cada um, e Tommy e Unstand caminharam até a hospedaria, onde o senhor Vromios deu a cada um deles uma caneca da melhor cereja como recompensa por terem feito a guarda. Ouvia-se um burburinho de animação na hospedaria, agora totalmente cheia. Estava lotada de visitantes de todas as raças, ou pelo menos assim parecia a Unstand, que não tinha nenhuma noção de distância entre bosques que rodeavam a Vila da Parede. Por isso ele olhava para o homem com uma cartola negra, sentado na mesa ao lado, com a mesma surpresa que seria ao olhar para o senhor alto e negro vestindo uma bata branca com quem o outro jantava.
Unstand sabia que era rude ficar olhando e que, como um dos moradores da Vila da Parede, tinha todo o direito de se sentir superior a todos os istrangeros. Mas sentia cheiros estranhos no ar e ouvia homens e mulheres conersando em centenas de línguas. Olhava abobado para eles, sem sentir vergonha.
O homem de cartola negra percebeu que Unstand estava olhando para ele e se voltou para o rapaz:
- Você gosta de pudim? - perguntou, de repente, como forma de iniciar uma conversa. - Mutanabbi precisa ir embora e há mais pudim do que um homem é capaz de comer sozinho.
Unstand aceitou. O cheiro de pudim era convidativo.
- Muito bem - disse o novo amigo. - Pode se servir.
Ele passou um prato de porcelana limpo e uma colher para Unstand. O rapaz não precisou de mais incentivo nenhum, e, juntos, os dois acabaram o pudim.
- Agora, meu jovem - disse o homem para Unstand, depois que os pratos e a bandeja com o pudim estavam quase vazios -, parece que a hospedaria está cheia; além disso, todos os quartos da vila que podiam ser alugados já foram.
- Verdade? - perguntou Unstand, sem surpresa.
- É verdade - respondeu o homem. - E eu estava aqui pensando se você por acaso não conhece uma casa que possa ter um quarto disponível?
Unstand deu de ombros.
- Todos os quartos estão ocupados agora - disse. - Lembro que, quando eu era garoto, tinha uns nove anos, minha mãe e meu pai me mandaram dormir nas vigas do estábulo, por uma semana, e deixaram meu quarto para uma senhora, sua família e seus criados. Ela me deu uma pipa como agradecimento, e eu a empinava no campo, até que um dia ela se soltou e voou para o céu.
- Onde você mora agora? - perguntou o homem.
- Tenho uma cabana perto das terras de meu pai - respondeu Unstand. - Era a cabana do nosso pastor, até que ele morreu, dois anos atrás, durante uma festa, e eles deram para mim.
- Leve-me até lá- disse o cavalheiro, e Unstand nem pensou em recusar.
A lua da primavera estava alta e brilhante, iluminando a noite. SAíram do vilarejo e desceram pela floresta, passando pela fazenda da família Tharn(onde o cavalheiro se assustou com uma vaca que dormia no pasto e roncava enquanto sonhava) até chegarem à cabana de Unstand.
Tinha só um aposento e uma lareira. O estrangeiro aprovou:
- Gosto do lugar - comentou. - Então, Unstand Tharn, quero alugá-la pelos próximos três dias.
- O que vai me dar em troca?
- Uma moeda de ouro, uma moeda de prata, uma moeda de bronze e algumas pedras preciosas.
Uma moeda de ouro por duas noites era mais do que justo naquela época em que um fazendeiro ficava feliz se conseguisse ganhar quinze moedas de ouro em um bom ano.
Ainda assim, Unstand hesitou:
- Se veio por causa do mercado - disse ao homem -, então deve negociar com milagres e maravilhas.
O homem alto concordou:
- Então, está atrás de milagres e maravilhas, certo? - Ele olhou ao redor, examinando a cabana de Unstand.
Naquele instante começou a chover e ouviu-se o som das gotas batendo no telhado de palha acima deles.
- Oh, muito bem - disse o cavalheiro alto, irritado. - Um milagre, uma maravilha. Amanhã, você vai encontrar o Desejo de seu Coração. Agora, aqui está o dinheiro - e tirou as moedas da orelha de Unstand, com um gesto simples. Unstand testou as moedas contra o ferro da porta, para ter certeza que era dinheiro de verdade, depois cumprimentou o valaheiro e saiu na chuva. Amarrou o dinheiro em um lenço.
Unstand andou sob a chuva forte até o estábulo. Subiu até o celerio e logo dormiu.
Durante a noite, percebeu que havia muitos trovões e raios, apesar de não ter acordado; nas primeiras horas da manhã, foi despertado por alguém desajeitado que pisava em seu pé.
- Desculpe - disse uma voz. - Quer dizer, dê licensa
- Quem é? Quem está aí? - perguntou Unstand
- Eu - respondeu a voz. - Estou aqui por causa do mercado. Estava dormindo no buraco de uma árvore, mas um raio caiu em cima dela, quebrou-a como um ovo e destruiu o tronco como se fosse um galho seco. A chuva estava chegando na altura do meu pescoço e ameaçava molhar toda minha bagagem. Há coisas aqui que precisam ficar secas como pó, e consegui deixar tudo bem sequinho, em segurança, apesar de eu estar tão molhado quanto...
- Água? - sugeriu Unstand
- Muita - continuou a voz na escuridão. - Estou aqui imaginando - prosseguiu - se você se importaria de eu ficar aqui sob seu teto, porque não sou grande e não vou perturbá-lo nem nada.
- Só tente não pisar em mim - suspirou Unstand.
Foi aí que um raio iluminou o estábulo e, com a luz, Unstand viu algo pequeno e peludo no canto, usando um chapéu de abas largas e sua mala. Depois, a escuridão voltou.
- Espero que não esteja perturbando - disse a voz que, certamente, soava um tanto quanto peluda.
- Não está - Unstand respondeu, muito cansado
- Que bom - disse a voz peluda. - Porque não quero perturbá-lo.
- Por favor - pediu Unstand. - Deixe-me dormir. Por favor.
Ele ouviu um som ofegante, que logo foi substituido por um ronco baixo.
Unstand rolou sobre o feno. A pessoa (quem quer que fosse ou o que quer que fosse) peidou, couçou-se e começou a roncar de novo.
Unstand ouvia a chuva bater no telhado do estábulo e pensaa em Daise Hampstock. Em sua imaginação, os dois caminhavam juntos e, seis passos atrás, vinham um homem alto com cartola na cabeça e uma pequena criatura peluda cujo rosto Unstand não conseguia ver. Iam em direção ao Desejo do Coração de Unstand.
O sol forte batia no rosto dele e o estábulo estava vazio. Unstand lavou o rosto e caminhou até a casa da fazenda.
Vestiu sua melhor jaqueta, a melhor camisa e a melhor calça. Raspou a lama das botas com a faca. Depois, caminhou até a cozinha, deu um beijo na mãe e se serviu de pão e de uma boa porção de manteiga fresca.
Ao final, com o dinheiro bem amarrado no lenço de popelina, caminhou até a Vila da Parede e saudou os guardas no portão.
Através da passagem, ele enxergava as barracas coloridas a ser montadas, palcos se erguendo, bandeiras multicores e gente andando de um lado para o outro.
- Não podemos deixar nínguem passar até o meio-dia - disse o guarda.
Unstand deu de ombros e foi até o bar, onde ficou pensando no que poderia comprar com suas economias (a meia coroa brilhante que guardara e a moeda de prata da sorte, com um buraco no meio, que ele passara por um fio e pendurara no pescoço) e com o lenço adicional cheio de moedas que trazia no bolso. Tinha até se esquecido da outra promessa da noite anterior. Ao soar do meio-dia, Unstand foi até a parede e, nervoso, como se estivesse quebrando o maior dos tabus, atravessou-a e se deu conta de que estava ao lado do caalheiro de cartola, que o cumprimentou.
- Ah, meu senhorio. E como está o senhor hoje?
- Muito bem - respondeu Unstand.
- Venha comigo - disse o homem alto. - Vamos dar uma volta juntos.
Atravessaram o prado em direção às barracas.
- Já esteve aqui antes? - Perguntou o homem alto.
- Vim no ultimo mercado, nove anos atrás. Era só um menino - admitiu Unstand
- Bem - disse o inquilino - Lembre-se de ser educado e de não aceitar nenhum presente. Lembre-se de que você é um convidado. E agora vou fazer a ultima parte do pagamento do aluguel que estou devendo. Porque fiz uma promessa. E meus presentes duram muito tempo. Você e seu primogênito e o primogênito dele.....É um presente que durará enquanto eu viver.
- E o que é, senhor?
- O Desejo de seu Coração, lembra-se? - disse o cavalheiro de cartola. - O Desejo do seu Coração.
Unstand agradeceu, e dirigiram-se à feira.
- Olhos, olhos" Olhos novos por velhos - gritava uma mulher baixinha na frente de uma mesa repleta de garrafas e jarras cheias de olhos e de todos os tipos e cores.
- Instrumentos musicais de centenas de lugares diferentes!
- Assobios por uma moeda de bronze!! Canções por duas moedas de bronze! Coro de partituras por três!
- Tente a sorte! É só entrar! Responda a um simples enigma e ganhe uma flor!
- Lavanda permanente! Roupas de alta Categoria!
- Sonhos engarrafados, uma moeda de bronze por garrafa!
- Casacos da noite! Casados do amanhecer! Casacos do crepúsculo!
- Espadas da sorte! Varinhas poderosas! Anéis da eternidade! Cartas abençoadas! Venham, venham, por aqui!
- Unguëntos e pomadas, filtros e panacéias!
Unstand parou na frente de uma tenda coberta com pequenos ornamentos de cristal; examinou os animais em miniaturas, pensando em comprar um para Daise Hampstock. Pegou um gato de cristal, pouco maior que seu polegar. O gato piscou para ele e, chocado, deixou-o cair. Mas o gatinho se virou no ar como um felino de verdade e vaiu sobre as quatro patas. Então foi para o canto da tenda e ficou se lambendo.
Unstand continuou a andar.
Havia animação por toda a parte e estava barulhento, lotado de gente; todos os forasteiros que tinham ido à Vila da Parede nas semanas anteriores estavam ali, ao lado de diversos habitantes da cidade. O senhor Vromios montara uma tenda de vinhos e vendia garrafas e empanadas ao pessoal do vilarejo, que com frequência se sentia tentado pelas comidas vendidas pela gente Além-Parede, mas que ouvira dos avós, que ouviram dos avós deles, que era muito errado consumir a comida, as frutas e a água das fadas, além de experimentar o vinho deles.
A cada nove anos, o pessoal do outro lado da colina montava suas tendas, e por um dia e uma noite os campos recebiam o Mercado das Fadas; e havia, por dia e uma noite, a cada nove anos, intercâmbio entre as raças.
Havia maravilhas e milages à venda; havia coisas impensáveis e objetos inimagináveis(quem precisa, pensava Unstand, de uma casca de ovo cheia de água da chuva?). Ele tocava no dinheiro envolto no lenço dentro do bolso e procurava algo pequeno e barato para Daise.
Ouviu um tilintar suae no ar, sobreposto ao barulho do mercado, e caminhou em sua direção.
Passou por uma tenda onde cinco homens enormes dançavam ao som de uma sanfona de corda lúgubre tocada por um urso negro de olhar aflito; passou por uma tenda onde um homem careca de quimono colorido esmagava pratos de porcelana e os jogava em uma tigela de fogo, de onde subia uma fumaça multicor, chamando a atenção de quem passava.
O som do tilintar crecia cada vez mais.
A tenda parecia deserta. Estava coberta de flores: campânulas, dedaleiras e narcisos, mas também violeta e lírios, com pequenos carmesins rosa-silvestre, campânulas de inverno pálidas,não-te-esqueças-de-mim azuis e uma profusão de outras flores das quais Unstand não conseguia lembrar o nome. Cada flor era feita de vidro ou de cristal; se eram tecidas ou esculpidas, não dava para saber: eram falsificações quase perfeitas. E produziam um som parecido com o de sininhos de vidro.
- Olá? - chamou Unstand.
- Bom dia de amanhã neste Dia do Mercado - respondeu a dona da tenda, descendo da carroça colorida estacionada atrás da estrutura de madeira, com um lago sorriso de dentes brancos em um rosto moreno. Ela era gente de Além-Parede, ele sabia disso por causa dos olhos e das orelhas, visíveis por baixo do cabelo preto encaracolado. Os olhos dela eram de cor de violeta; já as orelhas eram iguais às de um elfo, talvez levemente curvadas.
Unstand pegou uma planta da tenda:
- Muito bonita - disse. Era uma violeta e ela tilintou e cantou enquanto ele a segurava, fazendo um som similar àquele obtido quando se molha o dedo e passa, com suavidade, pela beirada de uma taça de vinho.- Quanto custa?
Ela encolheu os ombros, e como aquilo foi lindo...
- Nunca se discute o custo no princípio - ela falou. - Pode ser mais caro do que você está preparado para pagar; aí você iria embora e ficaríamos os dois mais pobres por isso. Vamos discutir a mercadoria em linhas mais gerais.
Unstand parou.
O cavalheiro com cartola de seda passou pela tenda.
- Pronto - disse ele. - Meu débito está acertado e o aluguel está completo.
- De onde vêm estas flores? - perguntou Unstand.
- Ao lado do Monte Calamin há um bosque de flores de vidro; a jornada até lá é perigosa, ea volta é ainda pior.
- E para que servem?
- O uso e a função dessas flores são principalmente decorativos e recreativos; elas dão prazer; podem ser presenteadas ao ser amado como sinal de admiração e afieção, e o som que produzem é agradável de ouvir. Também refletem a luz de forma das mais agradáveis - e, para exemplificar, ergueu uma campânula azul na direção do sol. Unstand não pode deixar de observar que o tom da luz, brilhando atrávez do cristal púrpura, era inferior tanto em matiz quanto em intensidade ao dos olhos dela.
- Estou vendo - disse Unstand.
- São também usadas em feitiços e magias. O senhor é mágico...?
Unstand balançou a cabeça. Havia, ele percebeu, algo de impressionante naquela jovem.
- Ah. Ainda assim, são objetos maravilhosos.
O mais impressionante era uma fina corrente prateada, que ia do pulso até o tornozelo da moça e seguia para dentro da tenda.
Unstand fez um comentário sobre o assunto.
- A corrente? Ela me prende à tenda. Sou escrava pessoal da bruxa proprietária do estabelecimento. Ela me prendeu há muitos anos, quando eu brincava nas cachoeiras das terras de meu pai, bem no alto da montanha. Ela assumiu a foma de um sapinho lindo e foi fazendo com que eu a seguisse até que, sem perceber, deixei as terras de meu pai, onde ela retomou sua verdadeira forma e me enfiou em um saco.