Winstan
De Mystical Tales
Aqui, escrevo uma história do qual ouvi há algum tempo atrás.
Capt.1 No qual conhecemos a Vila da Parede e as coisas estranhas que lá acontecem a cada nove anos
Era uma vez um jovem que queria conquistar o Desejo de seu Coração.
Mas, como acontece em todo começo, e isso não é inteiramente novo(toda história sobre todo jovem que já foi ou será contada poderia começar da mesma forma), há muitas coisas estranhas sobre esse jovem e sobre o que se passou com ele, apesar de nem ele mesmo conhecer todos os fatos.
A história começou, como muitas outras, na Parede.
A Vila da Parede localiza-se no planalto de granito no meio de um bosque, o mesmo lugar onde esteve nos últimos seicentos anos. As casas do vilarejo são quadradas e antigas, construídas com pedras cinzentas, tetos escuros e altas chaminés; aproveitando cada centímetro do espaço na pedra, as casas se espremem umas contra as outras; aqui e ali, um arbusto ou árvore crece ao lado de uma construção.
Há uma estrada que leva à Vila da Parede, um caminho sinuoso pavimentado com pedras e cascalhos, que entra bosque adentro. Muito depois da floresta, o caminho se transforma em uma verdadeira estrada cheia de animais e bichos, que correm de uma floresta à outra.
Os habitantes da Vila da Parede são taciurnos, de dois tipos distintos: o nativo dali é tão cinzento, alto e atacarracado quanto o granito sobre o qual a cidade foi construída. Os outros são aqueles que adotaram a Vila da Parede como lar há vários anos, além de seus decendentes.
No lado oeste da Vila da Parede fica o bosque; ao sul há um lago de aparência plácida que engana, servido pelos riachos que descem da colina por trás do vilarejo, ao norte. Há campos acima das colinas, nos quais pastam as ovelhas. Ao leste, há mais bosques.
Logo a leste da Vila da Parede existe uma parede grande, alta e cinzenta, do qual o vilarejo tira seu nome. Essa parede é antiga, construída por blocos quadrados e toscos de granito; ele surge de dentro do bosque e, no final, volta para o mesmo lugar.
Só existe uma passagem na parede: uma abertura de quase dois metros de largura, ao lado da vila. Atráves dessa passagem, é possível avistar um prado bem verde; além do prado, um riacho e, além deste, árvores. De vez em quando, formas e figuras são vistas, entre as árvores, a distância. Formas grandes e estranhas, além de coisinhas tênues que piscam, brilham e depois somem.
Até hoje, dois moradores ficam de vigia na passagem, um de cada lado, revezando-se em turnos de oito horas. Carregam pesados porretes de madeira e cuidam da abertura do lado do vilarejo.
Sua principal função é evitar que as crianças passem pela abertura em direção ao prado e além dele. Ocasionalmente, precisam desencorajar um andarilho solitário ou um dos poucos dos visitantes da cidade a cruzar a passagem.
As crianças, é só ameaçar com o porrete. Já em relação aos andarilhos e visitantes, precisma ser mais criativos; só recorrem à força física em último caso, quando as histórias da grama récem-plantada ou de um perigoso touro solto não são suficientes.
É raro, mas às vezes chega à Vila da Parede alguém que sabe o que procura; essas pessoas ocasionalmente recebem permissão de passar. Elas carregam um brilho no olhar que, uma vez detectado, é inequívoco.
A guarda relaxa uma vez a cada nove anos, no dia Primeiro de Maio, quando acontece uma feira no prado.
Os eventos que seguem aconteceram há muitos anos.
Muita gente chegou aquelas bandas naquela primavera. As pessoas vinham sozinhas ou em duplas, desembarcadas em alguma doca: homens e mulheres com a pele branca como papel, de pele escura como rochas vulcânicas, de pele cor de canela, falando uma grande variedade de línguas. Vinham durante o mês de abril e viajavam de caravanas, cavalos ou carroças. Muitos chegavam caminhando.
Na época, Unstand Tharn tinha dezoito anos e não era nem um pouco romântico.
Tinha cabelos e olhos castanho-claros. Era um tanto alto e falava pouco. Tinha um sorriso fácil, que iluminava seu rosto. E ele sonhava. Enquanto trabalhava na terra de seu pai, sonhava em deixar a Vila da Parede, com todo seu charme imprevisível, para ir à outros lugares onde nada dependesse da direção do vento. Ele trabalhava na fazenda do pai e não possuía nada, só uma pequena cabana bem afastada, presenteada pela família.
Visitantes chegariam até a Vila da Parede naquele mês de abril, e Unstand não gostava muito daquela idéia. A hospedaria do senhor Vromios, A sétima Ave, que normalmente era um labirinto de quartos vazios, estava cheio havia uma semana, e os forasteiros já tinham começado a alugar quartos nas fazendas e casas do vilarejo, pagando pelo alojamento com moedas estranhas, ervas e especiarias e até pedras preciosas.
Com a aproximação da feiram a atmosfera de expectativa crescia. As pessoas acordavam mais cedo, contando os dias e os minutos. Os guardas no portão, ao lado da parede, viviam impacientes e nervosos. Figuras e sombras moviam-se por entre as árvores no limite do prado.
N'a Sétima Ave, Bridget Cofrey, considerada a serviçal mais linda que já existiu, provocava conflitos entre Tommy Foster, com quem fora vista no ano anterior, e um homem enorme de olhos escuros, que carregava um macaco pequeno e barulhento. O homem quase não falava comum, mas sorria de forma expressiva sempre que Bridget passava.
No balcão do bar, os moradores acomodavam-se muito perto dos visitantes e conversavam:
- É só a cada nove anos.
- Dizem que antigamente era todo ano, no verão.
- Pergunte ao Senhor Vromios. Ele sabe.
O senhor Vromios era alto e tinha a pele cor de oliva; seu cabelo escuro era encaracolado, bem curto; tinha olhos verdes. Quando as meninas da vila viravam mulheres, logo se interessavam por ele, que nunca correspondia.
Diziam que ele chegara à vila havia um tempo, como visitante. Mas acabou ficando por lá; e seu vinho era bom, corcordavam os locais.
Uma discussão explodiu no salão entre Tommy Foster e o homem de olhos escuros, cujo nome parecia ser Alum Bey.
- Alguém os separe! Em nome do céu! Parem com isso! - Gritava Bridget. - Eles vão lutar por minha causa! - Ela sacudia a cabeça em um gesto lindo: a luz das lanternas à óleo ressaltava seus cachos dourados perfeitos.
Ninguém fez menção de separar os homens, apesar de varias pessaos, tanto moradores quando récem-chegados, terem saído para assistir
Tommy Foster tirou a camisa e levantou os punhos. O estranho riu, cuspiu no chão e agarrou a mão direita de tommy, jogando-o no chão, o queixo na poeira. Tommy ficou de pé e correu em direção ao estranho. Golpeou o rosto do homem, mas logo foi parar de novo com a cara na sujeira, o rosto arranhado pelo pó, sem folêgo. Alum Bey riu e disse algo em outra língua.
Tão rápido e tão fácil, a luta tinha acabado.
Alum Bey subiu em cima de Tommy Foster e se exibiu para Bridget Cofrey, fazendo uma mesura e sorrindo com dentes brilhantes.
Bridget o ignorou e correu até Tommy:
- Por quê? O que ele fez para você, meu amor? - perguntava enquanto limpava a sujeira do rosto dele com o avental e dizia palavras carinhosas.
Alum Bey oltou com os espectadores para o salão da hospedaria e fez a cortesia de oferecer uma garrafa de bebida do senhor Vromios para Tommy Foster, quando este retornou. Nenhum dos dois sabia dizer muito bem quem tinha vencido, quem tinha perdido.
Unstand Tharn não estava n' A Sétima Ave naquela tarde; era um sujeito prático que passara os seis meses anteriores cortejando Daise Hampstock, uma jovem também muito prática. Durante as tardes, passeavam pela ila e discutiam a teoria da rotação do cultivo, o clima e outros assuntos práticos; e, nessas caminhadas, nas quais eram invariavelmente acompanhados pela mãe e pela irmã mais nova de Daise, a uns bons seis passos atrás deles, costumavam, de vez em quando, trocar olhares apaixonados.
Na porta da casa dos Hampstock, Unstand parava, fazia uma saudação e se despedia.
Daise Hampstock entrava em casa, tirava o chápeu e dizia:
- Eu queria muito que o senhor Tharn se decidisse a me pedir em casamento. Tenho certeza de que papai não se oporia.
- Na verdade, tenho certeza de que não - disse a mãe de Daise naquela tarde, como dizia toda tarde, enquanto tirava o chápeu e as luvas. Em seguida, conduziu as filhas até a sala de estar, onde um senhor muito alto com longa barba negra estava sentando, mexendo em sua mala. Daise, a mãe e a irmã fizeram uma reverência para o senhor(que falava pouco inglês e tinha chegado alguns dias antes). O visitante temporário, por sua vez, levnatou-se e as comprimentou.
Fazia frio naquele mês de abril, mas a primavera comportava-se sempre de maneira estranha mesmo.
Os visitantes chegavam pela floresta; tomavam os quartos dos hóspedes, dormiam nos estábulos. Alguns armavam tendas coloridas; outros chegavam em suas próprias caravanas, com enormes cavalos cinzentos ou pequenos pôneis.
Na floresta, um tapete de flores cobria o chão.
Na manhã de 29 de abril, Unstand Tharn e Tommy Foster ficaram de guarda na passagem do muro. Cada um tomou um lado da abertura, esperando.
Unstand já ficara de guarda muitas vezes antes, mas, até então, o único trabalho fora espantar algumas crianças.
Naquele dia ele se sentia importante; segurava um porrete de madeira e, quando algum estrangeiro tentava atravessar o muro, ele ou Tommy diziam: "Amanhã, amanhã. Ninguem pode passar hoje, senhores".
E os estranhos recuavam um pouco e espiavam através da passagem no muro o prado desprentensioso do outro lado e as árvores comuns que pontilhavam o campo junto à floresta, sem grandes atrativos por trás delas. Alguns tentavam conversar com Unstand ou Tommy, mas os jovens, orgulhosos da posição de guardas, evitavam a conversa, contentando-se em levantar a cabeça, apertar os lábios e, em geral, fazer pose de importante.
Na hora do almoço, Daise Hamptock trouxe um prato de torta de carne com batatas e legumes para os dois e Bridget Cofrey, um pouco de cerveja picante.
E, ao final do dia, outros dois jovem do vilarejo chegaram, carregando uma lanterna cada um, e Tommy e Unstand caminharam até a hospedaria, onde o senhor Vromios deu a cada um deles uma caneca da melhor cereja como recompensa por terem feito a guarda. Ouvia-se um burburinho de animação na hospedaria, agora totalmente cheia. Estava lotada de visitantes de todas as raças, ou pelo menos assim parecia a Unstand, que não tinha nenhuma noção de distância entre bosques que rodeavam a Vila da Parede. Por isso ele olhava para o homem com uma cartola negra, sentado na mesa ao lado, com a mesma surpresa que seria ao olhar para o senhor alto e negro vestindo uma bata branca com quem o outro jantava.
Unstand sabia que era rude ficar olhando e que, como um dos moradores da Vila da Parede, tinha todo o direito de se sentir superior a todos os istrangeros. Mas sentia cheiros estranhos no ar e ouvia homens e mulheres conersando em centenas de línguas. Olhava abobado para eles, sem sentir vergonha.
O homem de cartola negra percebeu que Unstand estava olhando para ele e se voltou para o rapaz:
- Você gosta de pudim? - perguntou, de repente, como forma de iniciar uma conversa. - Mutanabbi precisa ir embora e há mais pudim do que um homem é capaz de comer sozinho.
Unstand aceitou. O cheiro de pudim era convidativo.
- Muito bem - disse o novo amigo. - Pode se servir.
Ele passou um prato de porcelana limpo e uma colher para Unstand. O rapaz não precisou de mais incentivo nenhum, e, juntos, os dois acabaram o pudim.
- Agora, meu jovem - disse o homem para Unstand, depois que os pratos e a bandeja com o pudim estavam quase vazios -, parece que a hospedaria está cheia; além disso, todos os quartos da vila que podiam ser alugados já foram.
- Verdade? - perguntou Unstand, sem surpresa.
- É verdade - respondeu o homem. - E eu estava aqui pensando se você por acaso não conhece uma casa que possa ter um quarto disponível?
Unstand deu de ombros.
- Todos os quartos estão ocupados agora - disse. - Lembro que, quando eu era garoto, tinha uns nove anos, minha mãe e meu pai me mandaram dormir nas vigas do estábulo, por uma semana, e deixaram meu quarto para uma senhora, sua família e seus criados. Ela me deu uma pipa como agradecimento, e eu a empinava no campo, até que um dia ela se soltou e voou para o céu.
- Onde você mora agora? - perguntou o homem.
- Tenho uma cabana perto das terras de meu pai - respondeu Unstand. - Era a cabana do nosso pastor, até que ele morreu, dois anos atrás, durante uma festa, e eles deram para mim.
- Leve-me até lá- disse o cavalheiro, e Unstand nem pensou em recusar.
A lua da primavera estava alta e brilhante, iluminando a noite. SAíram do vilarejo e desceram pela floresta, passando pela fazenda da família Tharn(onde o cavalheiro se assustou com uma vaca que dormia no pasto e roncava enquanto sonhava) até chegarem à cabana de Unstand.
Tinha só um aposento e uma lareira. O estrangeiro aprovou:
- Gosto do lugar - comentou. - Então, Unstand Tharn, quero alugá-la pelos próximos três dias.
- O que vai me dar em troca?
- Uma moeda de ouro, uma moeda de prata, uma moeda de bronze e algumas pedras preciosas.
Uma moeda de ouro por duas noites era mais do que justo naquela época em que um fazendeiro ficava feliz se conseguisse ganhar quinze moedas de ouro em um bom ano.
Ainda assim, Unstand hesitou:
- Se veio por causa do mercado - disse ao homem -, então deve negociar com milagres e maravilhas.
O homem alto concordou:
- Então, está atrás de milagres e maravilhas, certo? - Ele olhou ao redor, examinando a cabana de Unstand.
Naquele instante começou a chover e ouviu-se o som das gotas batendo no telhado de palha acima deles.
- Oh, muito bem - disse o cavalheiro alto, irritado. - Um milagre, uma maravilha. Amanhã, você vai encontrar o Desejo de seu Coração. Agora, aqui está o dinheiro - e tirou as moedas da orelha de Unstand, com um gesto simples. Unstand testou as moedas contra o ferro da porta, para ter certeza que era dinheiro de verdade, depois cumprimentou o valaheiro e saiu na chuva. Amarrou o dinheiro em um lenço.
Unstand andou sob a chuva forte até o estábulo. Subiu até o celerio e logo dormiu.
Durante a noite, percebeu que havia muitos trovões e raios, apesar de não ter acordado; nas primeiras horas da manhã, foi despertado por alguém desajeitado que pisava em seu pé.
- Desculpe - disse uma voz. - Quer dizer, dê licensa
- Quem é? Quem está aí? - perguntou Unstand
- Eu - respondeu a voz. - Estou aqui por causa do mercado. Estava dormindo no buraco de uma árvore, mas um raio caiu em cima dela, quebrou-a como um ovo e destruiu o tronco como se fosse um galho seco. A chuva estava chegando na altura do meu pescoço e ameaçava molhar toda minha bagagem. Há coisas aqui que precisam ficar secas como pó, e consegui deixar tudo bem sequinho, em segurança, apesar de eu estar tão molhado quanto...
- Água? - sugeriu Unstand
- Muita - continuou a voz na escuridão. - Estou aqui imaginando - prosseguiu - se você se importaria de eu ficar aqui sob seu teto, porque não sou grande e não vou perturbá-lo nem nada.
- Só tente não pisar em mim - suspirou Unstand.
Foi aí que um raio iluminou o estábulo e, com a luz, Unstand viu algo pequeno e peludo no canto, usando um chapéu de abas largas e sua mala. Depois, a escuridão voltou.
- Espero que não esteja perturbando - disse a voz que, certamente, soava um tanto quanto peluda.
- Não está - Unstand respondeu, muito cansado
- Que bom - disse a voz peluda. - Porque não quero perturbá-lo.
- Por favor - pediu Unstand. - Deixe-me dormir. Por favor.
Ele ouviu um som ofegante, que logo foi substituido por um ronco baixo.
Unstand rolou sobre o feno. A pessoa (quem quer que fosse ou o que quer que fosse) peidou, couçou-se e começou a roncar de novo.
Unstand ouvia a chuva bater no telhado do estábulo e pensaa em Daise Hampstock. Em sua imaginação, os dois caminhavam juntos e, seis passos atrás, vinham um homem alto com cartola na cabeça e uma pequena criatura peluda cujo rosto Unstand não conseguia ver. Iam em direção ao Desejo do Coração de Unstand.
O sol forte batia no rosto dele e o estábulo estava vazio. Unstand lavou o rosto e caminhou até a casa da fazenda.
Vestiu sua melhor jaqueta, a melhor camisa e a melhor calça. Raspou a lama das botas com a faca. Depois, caminhou até a cozinha, deu um beijo na mãe e se serviu de pão e de uma boa porção de manteiga fresca.
Ao final, com o dinheiro bem amarrado no lenço de popelina, caminhou até a Vila da Parede e saudou os guardas no portão.
Através da passagem, ele enxergava as barracas coloridas a ser montadas, palcos se erguendo, bandeiras multicores e gente andando de um lado para o outro.
- Não podemos deixar nínguem passar até o meio-dia - disse o guarda.
Unstand deu de ombros e foi até o bar, onde ficou pensando no que poderia comprar com suas economias (a meia coroa brilhante que guardara e a moeda de prata da sorte, com um buraco no meio, que ele passara por um fio e pendurara no pescoço) e com o lenço adicional cheio de moedas que trazia no bolso. Tinha até se esquecido da outra promessa da noite anterior. Ao soar do meio-dia, Unstand foi até a parede e, nervoso, como se estivesse quebrando o maior dos tabus, atravessou-a e se deu conta de que estava ao lado do caalheiro de cartola, que o cumprimentou.
- Ah, meu senhorio. E como está o senhor hoje?
- Muito bem - respondeu Unstand.
- Venha comigo - disse o homem alto. - Vamos dar uma volta juntos.
Atravessaram o prado em direção às barracas.
- Já esteve aqui antes? - Perguntou o homem alto.
- Vim no ultimo mercado, nove anos atrás. Era só um menino - admitiu Unstand
- Bem - disse o inquilino - Lembre-se de ser educado e de não aceitar nenhum presente. Lembre-se de que você é um convidado. E agora vou fazer a ultima parte do pagamento do aluguel que estou devendo. Porque fiz uma promessa. E meus presentes duram muito tempo. Você e seu primogênito e o primogênito dele.....É um presente que durará enquanto eu viver.
- E o que é, senhor?
- O Desejo de seu Coração, lembra-se? - disse o cavalheiro de cartola. - O Desejo do seu Coração.
Unstand agradeceu, e dirigiram-se à feira.
- Olhos, olhos" Olhos novos por velhos - gritava uma mulher baixinha na frente de uma mesa repleta de garrafas e jarras cheias de olhos e de todos os tipos e cores.
- Instrumentos musicais de centenas de lugares diferentes!
- Assobios por uma moeda de bronze!! Canções por duas moedas de bronze! Coro de partituras por três!
- Tente a sorte! É só entrar! Responda a um simples enigma e ganhe uma flor!
- Lavanda permanente! Roupas de alta Categoria!
- Sonhos engarrafados, uma moeda de bronze por garrafa!
- Casacos da noite! Casados do amanhecer! Casacos do crepúsculo!
- Espadas da sorte! Varinhas poderosas! Anéis da eternidade! Cartas abençoadas! Venham, venham, por aqui!
- Unguëntos e pomadas, filtros e panacéias!
Unstand parou na frente de uma tenda coberta com pequenos ornamentos de cristal; examinou os animais em miniaturas, pensando em comprar um para Daise Hampstock. Pegou um gato de cristal, pouco maior que seu polegar. O gato piscou para ele e, chocado, deixou-o cair. Mas o gatinho se virou no ar como um felino de verdade e vaiu sobre as quatro patas. Então foi para o canto da tenda e ficou se lambendo.
Unstand continuou a andar.
Havia animação por toda a parte e estava barulhento, lotado de gente; todos os forasteiros que tinham ido à Vila da Parede nas semanas anteriores estavam ali, ao lado de diversos habitantes da cidade. O senhor Vromios montara uma tenda de vinhos e vendia garrafas e empanadas ao pessoal do vilarejo, que com frequência se sentia tentado pelas comidas vendidas pela gente Além-Parede, mas que ouvira dos avós, que ouviram dos avós deles, que era muito errado consumir a comida, as frutas e a água das fadas, além de experimentar o vinho deles.
A cada nove anos, o pessoal do outro lado da colina montava suas tendas, e por um dia e uma noite os campos recebiam o Mercado das Fadas; e havia, por dia e uma noite, a cada nove anos, intercâmbio entre as raças.
Havia maravilhas e milages à venda; havia coisas impensáveis e objetos inimagináveis(quem precisa, pensava Unstand, de uma casca de ovo cheia de água da chuva?). Ele tocava no dinheiro envolto no lenço dentro do bolso e procurava algo pequeno e barato para Daise.
Ouviu um tilintar suae no ar, sobreposto ao barulho do mercado, e caminhou em sua direção.
Passou por uma tenda onde cinco homens enormes dançavam ao som de uma sanfona de corda lúgubre tocada por um urso negro de olhar aflito; passou por uma tenda onde um homem careca de quimono colorido esmagava pratos de porcelana e os jogava em uma tigela de fogo, de onde subia uma fumaça multicor, chamando a atenção de quem passava.
O som do tilintar crecia cada vez mais.
A tenda parecia deserta. Estava coberta de flores: campânulas, dedaleiras e narcisos, mas também violeta e lírios, com pequenos carmesins rosa-silvestre, campânulas de inverno pálidas,não-te-esqueças-de-mim azuis e uma profusão de outras flores das quais Unstand não conseguia lembrar o nome. Cada flor era feita de vidro ou de cristal; se eram tecidas ou esculpidas, não dava para saber: eram falsificações quase perfeitas. E produziam um som parecido com o de sininhos de vidro.
- Olá? - chamou Unstand.
- Bom dia de amanhã neste Dia do Mercado - respondeu a dona da tenda, descendo da carroça colorida estacionada atrás da estrutura de madeira, com um lago sorriso de dentes brancos em um rosto moreno. Ela era gente de Além-Parede, ele sabia disso por causa dos olhos e das orelhas, visíveis por baixo do cabelo preto encaracolado. Os olhos dela eram de cor de violeta; já as orelhas eram iguais às de um elfo, talvez levemente curvadas.
Unstand pegou uma planta da tenda:
- Muito bonita - disse. Era uma violeta e ela tilintou e cantou enquanto ele a segurava, fazendo um som similar àquele obtido quando se molha o dedo e passa, com suavidade, pela beirada de uma taça de vinho.- Quanto custa?
Ela encolheu os ombros, e como aquilo foi lindo...
- Nunca se discute o custo no princípio - ela falou. - Pode ser mais caro do que você está preparado para pagar; aí você iria embora e ficaríamos os dois mais pobres por isso. Vamos discutir a mercadoria em linhas mais gerais.
Unstand parou.
O cavalheiro com cartola de seda passou pela tenda.
- Pronto - disse ele. - Meu débito está acertado e o aluguel está completo.
- De onde vêm estas flores? - perguntou Unstand.
- Ao lado do Monte Calamin há um bosque de flores de vidro; a jornada até lá é perigosa, ea volta é ainda pior.
- E para que servem?
- O uso e a função dessas flores são principalmente decorativos e recreativos; elas dão prazer; podem ser presenteadas ao ser amado como sinal de admiração e afieção, e o som que produzem é agradável de ouvir. Também refletem a luz de forma das mais agradáveis - e, para exemplificar, ergueu uma campânula azul na direção do sol. Unstand não pode deixar de observar que o tom da luz, brilhando atrávez do cristal púrpura, era inferior tanto em matiz quanto em intensidade ao dos olhos dela.
- Estou vendo - disse Unstand.
- São também usadas em feitiços e magias. O senhor é mágico...?
Unstand balançou a cabeça. Havia, ele percebeu, algo de impressionante naquela jovem.
- Ah. Ainda assim, são objetos maravilhosos.
O mais impressionante era uma fina corrente prateada, que ia do pulso até o tornozelo da moça e seguia para dentro da tenda.
Unstand fez um comentário sobre o assunto.
- A corrente? Ela me prende à tenda. Sou escrava pessoal da bruxa proprietária do estabelecimento. Ela me prendeu há muitos anos, quando eu brincava nas cachoeiras das terras de meu pai, bem no alto da montanha. Ela assumiu a foma de um sapinho lindo e foi fazendo com que eu a seguisse até que, sem perceber, deixei as terras de meu pai, onde ela retomou sua verdadeira forma e me enfiou em um saco.
- E você será escrava dela para sempre?
- Não para sempre - e a garota sorriu - ganharei minha liberdade no dia em que a lua perder sua filha, se isso ocorrer na semana em que duas segundas-feiras se juntarem. Espero com paciência. Enquanto isso, continuo presa e fico sonhando. Você vai comprar uma flor minha agora, jovem mestre?
- Meu nome é Unstand.
- E é um nome honesto também.
- E qual é o seu nome? - perguntou Unstand, com o rosto todo corado.
- Não tenho nome. Sou escrava e o nome que tinha foi tirado de mim. Respondo a "ei, você", ou a "garota", ou "sua suja tola", ou a vários outros insultos.
Unstand observou como o tecido da bata dela se apertava contra seu corpo; delineou as curvas elegantes, percebeu os olhos violetas sobre si e engoliu em seco.
Em seguida, colocou a mão no bolso e tirou o lenço. Não conseguia mais olhar para aquela mulher. Deixou cair o dinheiro sobre o balcão.
- Pode pegar o que achar suficiente - disse, escolhendo da mesa uma campânula de inverno muito branca.
- Não aceitamos dinheiro nessa tenda - ela empurrou as moedas de volta para ele.
- Não? O que aceitam? - agora ele ficara muito agitado e sua unica missão era comprar a flor para... para Daise, Daise Hampstock... comprar a flor e partir; para dizer a verdade, a jovem o estara deixando extremamente desconfortável.
- Poderia aceitar a cor do seu cabelo - ela disse. - Ou todas as suas memórias antes dos três anos de idade. Poderia aceitar a audição do seu ouvido esquerdo... não toda, só o suficiente para você não ouvir mais música ou apreciar a água correndo num rio ou o murmúrio do vento.
Unstand balançou a cabeça.
- Ou um beijo seu. Um beijo, aqui no meu rosto.
- Isso eu pago de boa vontade - disse Unstand e se inclinou sobre o balcão, entre o tilintar das flores de cristal, e deu um beijo casto naquele rosto macio. Ele sentiu o perfume dela, intoxicante, mágico, que penetrou na cabeça, no peito e na mente dele.
- Pronto, aqui está - ela disse e lhe entregou a campânula. Ele a pegou com mãos que, de repente, pareciam grandes e torpes. Nem um pouco pequenas e perfeitas, como as da garota-fada. - E eu o verei aqui de novo esta noite, Unstand Tharn, quando a lua se puser. Venha aqui e pie como uma corujinha. Consegue fazer isso?
Ele concordou e se afastou dela; não precisava perguntar como ela sabia seu sobrenome; tinha-no roubado dele, com outras coisas, como seu coração, naquele beijo.
A flor tilintava em sua mão.
- O que foi, Unstand Tharn? - perguntou Daise Hampstock, quando ele a encontrou, ao lado da tenda do senhor Vromios, acomodada com a família, comendo salsichas e bebendo cerveja preta. - O que aconteceu?
- Trouxe um presente - ele murmurou e estendeu a flor tilintante, que brilhava ao sol da tarde, em sua direção. Ela a pegou, perplexa, com os dedos ainda brilhantes da gordura da salsicha. Impulsivamente, Unstand se inclinou e, na frente da mãe, do pai e da irmã, na frente de Bridget Cofrey e do senhor Vromios e de todos, beijou-a no rosto.
O protesto foi previsível; mas o senhor Hampstock, que não vivera à toa na divida da Terra das Fadas e Além por cinquenta e sete anos, exclamou:
- SIlêncio, agora! Veja os olhos dele. Não percebem que o pobre rapaz está confuso das idéias, tonto e aturdido? Ele foi enfeitiçado, aposto. Ei! Tommy Foster! Venha aqui; leve o jovem Unstand Tharn de volta para o vilarejo e fique de olho nele. deixe-o dormir se quiser ou converse com ele, se for disso que ele precisa...
E Tommy tirou Unstand do mercado e o levou de volta para a Vila da Parede.
- Ora, Daise - disse a mãe, acariciando seu cabelo. -, ele só está influenciado pelos elfos, só isso. Não é necessário se preocupar - tirou um lenço do meio dos seios fartos e limpou o rosto da filha.
Daise olhou para ela, agarrou o lenço, asoou o nariz e chorou. E a senhora Hampstock observou, com certa perplexidade, que Daise parecia estar sorrindo por entre as lágrimas.
- Mas, mãe, Unstand me beijou - disse Daise Hampstock ao prender a flor de cristal na frente do chápeu, onde ela ficou tilintando e brilhando.
O senhor Hampstock e o pai de Unstand se encontraram na tenda onde as flores de cristais estavam à venda; mas quem atendia era uma mulher velha, acompanhada por um pássaro exótico e lindo, preso a um poleiro por uma fina corrente de prata; não havia como argumentar com a velha; ela só falava do desaparecimento de um dos objetos mais preciosos de sua coleção e que isso ocorrera por ingratidão e por culpa desses tempos modernos, além de falar mal dos criados de hoje.
No vilarejo vazio (quem estaria ali se podia estar no mercado?), Unstand foi levado para A Sétima Ave e colocado em um banco de maeira. Apoiou a testa na mão e ficou olhando para o nada. De vez em quando, soltava um suspiro profundo como o vento. Tommy Foster tentou conversar.
- Então, velho camarada, anime-se! Quero ver, vamos dar um sorriso, hã? O que acha de comer alguma coisa? Que tal beber algo? Não? Quer saber, você parece estranho, Unstand, meu velho... - Como não obteve nenhuma resposta, Tommy começou a pensar no mercado, onde naquele momento (esfregou o queixo) a adorável Bridget estaria na companhia de algum cavalheiro alto e imponente, com roupas exóticas e um pequeno macaco que fala. E, seguro de que o amigo não tinha, ou pelo menos não parecia ter, nenhuma itnenção de sair da hospedaria, Tommy voltou a cruzar a passagem na parede até a feira.
Agora o lugar tinha virado um alvoroço: era uma loucura de apresentações de bonecos, malabaristas e animais dançarinos, de cavalos para leilão e de todas as coisas para vender ou trocar.
Depois, à noite, surgiram diferentes tipos de pessoas. Havia um apregoador que gritava as notícias como se fossem coisas de outro mundo: "O mestre da Fortaleza dos Trovões sofre doença misteriosa!", "A Colina de Fogo se mudou para a Fortaleza de Dene!"; em troca de uma moeda, ele discursava sobre essas pessoas e esses lugares.
O sol se pôs e uma enorme lua de primavera apareceu bem alta no céu. Um vento gelado soprava. Os comerciantes se retiraram para suas tendas e os visitantes do mercado só escutavam os sussuros que os convidavam a tomar parte de várias coisas maravilhosas, todas dispon´veis por certo preço.
E, quando a lua começou a descer no horizonte, Unstand Tharn percorreu em silêncio as ruas de paralelepípedo da Vila da Parede. Passou por vários grupos de pessoas (visitantes ou estrangeiros) que celebravam, mas quase ninguém prestou atenção nele.
Atravessou a passagem na parede. Como era grossa, Unstand ficou pensando, como seu pai pensara antes dele. O que aconteceria se caminhasse por cima dela?
Ao adentrar a passagem, enquanto cruzava o prado, Unstand pensou, pela primeira vez na vida, em como seria ir além do riacho e desaparecer no meio das árvores, para longe dos campos conhecidos. Sentiu-se desconfortável co ma idéia, como um homem que recebe visitas inesperadas. Ao alcançar seu objetivo, afastou os pensamentos para longe, como o homem que pede licença às visitas murmurando algo sobre algum compromisso marcado previamente com o chapeleiro.
A lua ia se pondo.
Unstand levou a mão à boca e piou. Nenhuma resposta. O céu lá em cima ficou bem escuro (azul, talvez, ou roxo, não preto), salpicado de mais estrelas do que a mente é capaz de imaginar.
Piou mais uma vez.
- Isso - ela disse,brava - não se parece nada com uma corujinha. Uma coruja da neve poderia ser, ou até mesmo uma comum. Se meus ouvidos estivessem cheios de capim, talvez imaginasse que fosse uma coruja-real. Mas não é uma corujinha.
Unstand encolheu os ombros e sorriu, um pouco tonto. A fada se sentou ao seu lado. Ela o intoxicava; ele respirava por ela, podia senti-la pelos poros da pele. Ela se inclinou.
- você acha que está enfeitiçado, lindo Unstand?
- Não sei.
Ela riu. E o som de sua risada parecia um riacho límpido, borbulhando sobre pedras e rochas.
- Você não está enfeitiçado, garoto lindo, garoto lindo. - Ela se deitou na grama e olhou para o céu. - Como são as estrelas de vocês? - ela perguntou.
Unstand se deitou na grama fria e olhou para o céu noturno. Havia ceertamente algo estranho naquelas estrelas; talvez estivessem mais coloridas, talvez fosse algo em relação ao número de estrelinhas, constelações; havia uma coisa estranha e maravilhosa naquele céu. Mas então...
Deitaram-se juntos, olhando o céu.
- O que você quer da vida? - perguntou a garota-fada.
- Não sei - ele admitiu - Você, acho.
- Eu quero minha liberdade - ela falou.
Unstand pegou a corrente prateada que ligavao puls dela ao tornozelo e seguia pela grama. Ele puxou. Era mais forte do que parecia.
- Alento de gato, escamas de peixe e luar, tudo misturado com prata - ela contou. - Inquebrável até que os termos do feitiço tenham se concluído.
- Ah - ele se afastou.
- Eu não deveria me importar, porque essa corrente é muito comprida; mas saber que ela está aí me irrita e sinto muita falta das terras de meu pai. E a bruxa não é uma das melhores patroas...
Ficou quieta. Unstand se inclinou em sua direção, colocou a mão em seu rosto e sentiu uma cosia molhada e quente.
- Por que está chorando?
Ela não disse nada. Unstand puxou-a para si e tentou enxugar, sem conseguir, o rosto dela com sua mão grande; inclinou-se, então, sobre seu rosto e, indeciso, sem saber se estava fazendo a coisa certa, dada as circunstâncias, beijou seus lábios ardentes.
Houve um momento de hesitação, mas logo a boca dela se abriu e sua língua deslizou para dentro da boca dele. Sob aquelas estrelas estranhas, ele ficou completa e irrevogavelmente perdido.
Já beijara garotas no vilarejo, mas nnca fora tão longe.
Suas mãos sentiam os pequenos seios dela através da seda do vestido e tocavam os bicos enrijecidos. Ela se agarrou a ele, com força, como se estivesse se afogando, arrancando sua camisa e suas calças.
Ela era tão pequena; ele tinha medo de machucá-la ou de quebrar-lhe algo. Nada aconteceu. Ela se retorcia debaixo dele, ofegando e chutando, guiando-o com as mãos.
Ela foi beijando o rosto e o peito dele, até ficar por cima, montada sobre ele, gritando e rindo, suando, escorregadia como um peixe. Enquanto isso, ele se arqueaa, empurrava e entrava em êxtase com a cabeça cheia da imagem dela - e só dela. Se soubesse qual era, teria dito seu nome.
No final, ele quis tirar, mas ela o segurou dentro dela, envolvendo o corpo dele com as pernas. Ela se agarrou e ele com tanta força que pareceu a Unstand que os dois ocupavam o mesmo lugar no universo, como se, durante um momente poderoso e envolvente, fossem a mesma pessoa, dando e recebendo, enquanto as estrelas iam se apagando no céu que precedia a aurora.
Ficaram ali deitados, lado a lado.
A fada ajustou o vestido de seda e voltou a se cobrir com decoro. Unstand subiu as calças, com remorso. Segurou a mão dela.
O suor secou. Ele ficou com frio e se sentiu sozinho.
Agora conseguia enxergá-la bem, com o céu se iluminando em um cinza que antecipava o nascer do sol.
Os animais iam acordando: os cavalos começavam a trotar, os pássaros, a cantar para a aurora que chegava e,aqui e ali, por todo o mercado, as pessoas nas tendas começavam a se levantar.
- Agora, fique bem - ela disse enquanto olhava para ele, meio arrependida, com olhos da cor do céu. E beijou a boca dele com suavidade, com lábios sabor de amora. Ela se levantou e caminhou até a carroça de cigana atrás da tenda.
Confuso e sozinho, Unstand caminhou pelo mercado, sentindo-se muito mais velho do que seus zezoito anos.
Voltou até o estábulo, tirou as botas e dormiu. Só acordou quando o sol já ia bem alto no céu.
No dia seguinte, o mercado chegou ao fim, mas Unstand não retornou e os forasteiros abandonaram o vilarejo. A vida na vila da Parede voltou ao normal: o que, na realidade, era um pouco menos normal do que a vida na maioria dos vilarejos (principalmente quando o vento soprava na direção errada). Mas, levando tudo em conta, era mesmo algo bastante normal.
Duas semanas depois do mercado, Tommy Foster pediu Bridget Cofrey em casamente e ela aceitou. E na semana seguinte àquela, em certa manhã, a senhora Hampstock fez uma visita à senhora Tharn. As duas tomaram chá na sala.
- Como foi maravilhoso o que o garoto Foster fez - afirmou a senhora Hampstock.
- É verdade - comentou a senhora Tharn. - Pegue mais um pouco de bolo, querida. Espero que sua Daise seja madrinha.
- Aposto que será - respondeu a senhora Hampstock. - Se ela viver até lá.
A senhora Tharn pareceu alarmada.
- Por quê? Está doente, senhora Hampstock? Diga que não.
- Ela não come, senhora Tharn. Está se consumindo. Só bebe um pouco de água de vez em quando.
- Oh, meu Deus!
- Na noite passada, finalmente descobri a causa. É o seu Unstand.
- Unstand? Ele não...
- Ah,não. Nada disso. Ele a ignora. Ela não o vê há dias. Está achando que ele não gosta mais dela. Fica segurando aquela flor que ganhou dele e suspira.
A senhora Tharn colocou mais chá na chaleira e completou com água quente.
- Para dizer a verdader - ela admitiu -, estamos um pouco preocupados com Unstand, Thorney e eu. Ele anda muito triste. É a unica coisa que posso dizer. Não está cumprindo suas tarefas. Thorney estaa mesm odizendo que o menino precisa se assentar e que, se isso acontecesse, deveria ficar com todos os campos do Oeste.
A senhora Hampstock balançou a cabeça devagar.
- Hampstock certamente não teria nada contra ver nossa Daise feliz. Por certo, daria um presente um rebanho de ovelhas para a menina.
As ovelhas dos Hampstock eram as melhores da Região, todos sabiam: peludas e inteligentes (para ovelhas), com cohifres retorcidos e cascos afiados.
E assim ficou estabelecido: Unstand Tharn se casou em junho com Daise Hampstock. E, se o noivo parecia um pouco distraído, bem, a noiva estava radiante e adorável como nenhuma outra.
Atrás deles, os pais discutiam os planos para a fazenda dos recém-casados, que seria construída nos campos do lado Oeste. Já as mães concordavam em como Daise estava bonita e que era uma pena Unstand tê-la impedido de usar, presa novestido de casamente, a flor de cristal que comprara para ela no mercado.
E é ali que vamos deixá-los, sob uma chuva de pétalas de rosas escarlates, cor-de-rosa e brancas.
Ou quase.
Ficaram morando na cabana de Unstand enquanto a pequena casa de fazenda era construída e viviam felizes. O cotidiano de criação, ordenha e cuidados com as ovelhas foi pouco a pouco tirando o olhar distante do rosto de Unstand.
Veio o primeiro outono, depois o inverno; já era fim de fevereiro, o mundo estava frio e um vento forte soprava pela colina e pela floresta sem folhas; a chuva gelada caía do céu pesado em um chuvisco incessante; era a época dos carneirinhos. Certo dia,ás seis da tarde, quando o sol já havia desaparecido e o céu estava escuro, um cesto de vime foi colocado na passagem da parede. Os guardas dos dois lados da abertura não o perceberam no início. Estavam olhando para o outro lado e, afinal de contas, estava escuro e úmido; eles se ocupavam batendo os pés no chão e olhando com tristeza para as luzes do vilarejo.
De repente, ouviu-se um choro alto e agudo.
Primeiro, perceberam o cesto a seus pés, depois avistaram seu contéudo, envolto em seda e cobertores de lã; um rosto vermelho berraa: tinha olhos pequenos e uma boca aberta, ruidosa e faminta.
Havia também, preso ao cobertor do bebê com uma agulha de prata, um pedaço de pergaminho, sobre o qual estava escrito em caligrafia elegante, apesar de um pouco arcaica, as seguintes palavras:
WINSTAN THARN
--Sangji 03h31min de 28 de Novembro de 2009 (UTC)Sangji